O aprendiz de criador
6 min readMar 28, 2021
- Filho, chegou a hora de lhe ensinar como criar mundos e vida dentro deles.
- Certo. Como começo?
- Primeiro, você precisará de alguns pedaços de pedra que estejam próximos a uma fonte de energia para o seu mundo.
- Encontrei estes aqui que estão próximos a uma bola de fogo muito quente. Posso tentar com estes?
- Sim, claro. Tente construir seu primeiro mundo.
- Eu moldei eles de maneira que formassem um planeta, mas esperei eras e não aconteceu mais absolutamente nada. O mundo apenas ficou girando em volta da bola de fogo.
- Isso é porque você colocou seu mundo muito perto do fogo. Tente criar outro mais longe.
- Certo. Repeti o processo colocando o mundo mais longe do fogo, mas ele congelou e, mesmo após eras, não aconteceu mais absolutamente nada nele.
- Você foi de um extremo a outro. Quem sabe você não tenta colocar um terceiro mundo no meio entre estes dois? Talvez assim você permita que surja vida.
- Está bem. Criei um terceiro mundo repetindo o mesmo processo, e, após aguardar muitas eras, finalmente parece que há algo acontecendo! Surgiram estes grandes reservatórios cheios de líquido, e dentro deles me parece que finalmente há vida!
- Parabéns filho! Você criou seu primeiro mundo com vida. Agora você precisa observar por algum tempo como ela se desenvolve e, se for o caso, intervir indireta ou diretamente.
- Por quê deveríamos intervir? Não é melhor deixar que a vida siga seu próprio caminho?
- Veja bem filho … às vezes as coisas fogem ao nosso controle, por mais que tomemos todos os cuidados. Nas muitas vezes em que criei mundos, a vida que resultou deles se tornou monstruosa, e foi necessário intervir para que mudasse seu curso e, em casos extremos, destruí-la completamente.
- Destruí-la?! Por quê uma medida tão extrema?
- Para quê criar um mundo que seja horrendo e lhe desagrade? Você deve criar um mundo semelhante com o que você espera de um mundo, com criaturas que busquem ser como você é. No caso delas irem no caminho oposto, não hesite em destruí-las. Observe! A vida no mundo que você criou está mudando!
- Verdade! Estes seres estão deixando as águas e começando a rastejar sobre os pequenos pedaços de terra que não foram inundados. Para ser sincero, me parecem repugnantes, mas eu não gostaria de destruí-los ainda. Tenho curiosidade em ver como eles podem desenvolver-se ainda.
- Observe atentamente para ter uma visão clara do rumo que estas criaturas escolheram tomar. Elas devoram uns aos outros de forma extremamente violenta, sem piedade ou compaixão sequer, e são incapazes de demonstrar qualquer traço disso, o que dirá de virtudes mais nobres ainda que eu e você possuímos. Por mais que este mundo seja capaz de nutrir a vida que nele habita, talvez esteja na hora de você realizar uma intervenção indireta.
- Como devo intervir?
- Há várias formas de você intervir indiretamente de forma que não destrua completamente toda a vida que habita neste mundo. Você pode inundá-lo por exemplo, atirar uma pedra, colidir com outro mundo, etc.
- Certo. Atingirei este mundo com uma pedra sobre as partes não inundadas, de forma que estes monstros rastejantes sejam todos destruídos. Eles estão ficando cada vez maiores em tamanho e mais violentos.
- Muito bem meu filho. Agora você deve esperar algumas eras até que a vida neste mundo possa recompor-se e gerar novas criaturas. Olhe! Há uma criatura que me parece promissora.
- Verdade! As variantes desta criatura são menores que aqueles monstros, e eles possuem a habilidade de criar ferramentas a partir do quê encontram pela natureza. No entanto, ainda possuem traços de muita violência e matam uns aos outros, semelhante ao que os rastejantes faziam.
- Pode ser que isto seja algum resquício das criaturas das eras passadas e possa diminuir com o tempo. Ainda assim, eles possuem uma característica que me preocupa. Diferente de todas as criaturas deste planeta, alguns eles parecem sentir prazer na crueldade e no sofrimento de seus semelhantes e de outras criaturas.
- De fato. Enquanto todos os outros seres deste planeta matam uns aos outros para alimentar-se, alguns destes parecem sentir prazer em matar apenas por matar, sem saciar nenhuma outra necessidade a não ser puro prazer. Será que minha criação regrediu? Devo começar tudo de novo?
- Ainda não, não se precipite. Observe atentamente. Esta criatura em particular está começando a raciocinar sobre o mundo que a cerca. Quer saber de onde veio, o seu propósito, como ela foi criada. Está ciente do seu passado, presente e futuro, e teme pelo último.
- Verdade. Além disso, está se multiplicando de uma forma muito acelerada, cobrindo todo o planeta! Estão construindo torres que apontam para os céus, criaram deuses para dar razão ao mundo!
- Veja! Suas ferramentas estão ficando cada vez mais complexas. Inclusive, estão desenvolvendo ferramentas com a finalidade específica de aniquilar seus semelhantes. As suas inclinações violentas e o seu sadismo não passaram com o tempo; pelo contrário, me parece até que piorou. Está na hora de intervirmos novamente.
- Mas espere pai! Não são todos que são sádicos e violentos. Alguns me parecem promissores e virtuosos. Não podemos deixar que estes sejam destruídos.
- Você tem fé que, ao salvar alguns destes espécimes, eles possam dar um rumo melhor à sua criação?
- Sim. Vamos remover só os que estão corrompidos com a violência e a monstruosidade herdada de eras atrás. Os que estão no caminho da virtude devem ser poupados, não acha?
- Escute com muita atenção meu filho. Estou vendo que você está se apegando e desenvolvendo apreço por estas criaturas. Por mais promissoras que elas lhe pareçam ser, pode ser que elas estejam fadadas ao fracasso invariavelmente, por mais que você insista em selecionar alguns poucos para recriar o mundo em diversas tentativas.
- Entendo pai. Talvez eu esteja mesmo desenvolvendo certo afeto por estes seres. Ainda tenho fé que eles possam tomar o rumo certo. Inundarei este mundo de forma que extermine todos, exceto por alguns poucos que sejam capazes de povoar este mundo novamente.
- Respeito a sua decisão filho. Vamos observar como esta criatura reconstruirá o mundo após algumas eras.
- Olá meu filho! Já se passou muito tempo desde a sua intervenção. Como estão se saindo aquelas criaturas?
- Eu não entendo pai … eu já destruí e recriei este mundo diversas vezes, mas sempre obtenho o mesmo resultado. Surge este ser sádico, que faz guerras, inclusive destrói parte do planeta que eu criei, e suas ferramentas se tornam cada vez mais poderosas e destrutivas. Penso que eles já possuem poder o suficiente para destruir meu mundo por completo! O que eu fiz de errado pai? Por favor, diga-me onde eu errei! Eu fiz tudo por eles, eu recriei este mundo diversas vezes até atingir a perfeição, e no entanto estes seres ingratos me retribuem dessa forma! Já tentei absolutamente de tudo, inclusive já me incorporei entre eles diversas vezes para tentar guiá-los usando seus próprios símbolos, linguagem e toda sua cultura, mas não adiantou!
- Acho que você acabou de aprender sua lição e está pronto para tornar-se um pai de fato. Veja bem filho, você não pode ficar cuidando destes seres para sempre, por mais que você queira lhes dar o mundo perfeito. Eu mesmo já fiz o mundo perfeito para minhas criaturas, e elas recusaram. Estes seres que você criou já possuem intelecto o suficiente para andarem por conta própria, pelas próprias pernas. Por mais que você queira guiá-las para o caminho certo, estas criaturas precisam encontrá-lo por conta própria, pois já estão desenvolvidas suficientemente pra isso. Agora você sabe como um pai se sente quando precisa entregar o seu filho ao mundo. Eu não tenho mais nada para lhe ensinar. Você está pronto para tomar meu lugar e criar outros mundos com outras criaturas.
- Então é isso? Eu nunca irei receber gratidão por tudo que eu fiz por eles?
- Você precisa ter paciência filho. Após muitas eras, pode ser que alguns destes seres tenham intelecto o suficiente para lhe encontrar e finalmente lhe dar toda a gratidão que você merece. Se você observar atentamente, verá que alguns deles já estão tentando lhe encontrar, mas infelizmente o intelecto deles é primitivo demais para sequer perceber sua presença, por mais que você esteja frente à frente com eles.
- Entendi pai. Terei paciência. Muito obrigado por tudo que você me ensinou. Aguardarei ansiosamente pelo dia em que minha criação se equiparará à mim.